UX/UI no Sistema de Processo Judicial Eletrônico Brasileiro

Eduardo Cairo
12 min readMar 17, 2023

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Uma breve análise da realidade por trás da informatização dos processos judiciais no Brasil

Já faz alguns anos que trabalho com a análise de interfaces do sistema judiciário eletrônico brasileiro. Como UX Designer, sinto-me na obrigação de trazer uma perspectiva que — muito provavelmente — você não faz ideia que exista.

O objetivo aqui é expor de forma geral alguns detalhes para que seja possível calcular o tamanho do problema de user experience e user interface, além de questões importantes da arquitetura que envolve toda a esfera dos sistemas informatizados do judiciário brasileiro. E para isso precisaremos falar brevemente da empreitada digital em seu nascedouro.

O projeto inicial do Processo Judicial Eletrônico tinha como objetivo trazer celeridade aos processos e praticidade no acesso à documentação. Os principais usuários seriam os advogados, que fariam login no sistema e enviaram a documentação de acordo com as regras estabelecidas.

Essa realidade atingiria um universo com pouco mais de 1.5 milhão de usuários diretos — advogados, defensores públicos, peritos –, e milhões de usuários indiretos — pessoas físicas, jurídicas e entidades, com uma média de 100 mil novos usuários — advogados — a cada ano, de acordo com dados da Ordem dos Advogados do Brasil.

Gráfico 1 — Usuários do Processo Judicial Eletrônico Brasileiro

Para estabelecer um número: apenas em 2022 foram executados 20,6 milhões inputs de novos processos eletrônicos pelos usuários, o que prova o alto volume de trânsito nas plataformas judiciais. Além do número exorbitante de entradas, temos uma quantidade absurda de sistemas (plataformas) diferentes.

E é aí que começa a análise. Bora lá.

1. Quantidade de sistemas e suas variações

O grande pesadelo de usabilidade começa agora! O Poder Judiciário brasileiro é composto por cinco segmentos: Justiça Estadual e Justiça Federal, que integram a Justiça Comum, e Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral e Justiça Militar, que integram a Justiça Especial.

Cada unidade federativa possui seus próprios tribunais e cada tribunal possui seu sistema. Sendo 27 unidades federativas, com no mínimo três sistemas em cada estado, chegamos ao número base de 81 portais judiciais eletrônicos no Brasil.

Ilustração 1 — Relação de Estado para Sistema

Ainda existem estados onde a quantidade de plataformas pode chegar em cinco ou mais. A realidade é que, somando tribunais militares, eleitorais e instâncias superiores, ultrapassamos a marca dos cem sistemas.

Cada plataforma apresenta um desenvolvimento particular, desde o acesso à área de login, passando pelo cadastramento, navegação, layout, tamanho e tipo de arquivos permitidos, consulta de processos, maneiras de acessar as chaves digitais e muito mais.

Esses portais também possuem nomes próprios: e-SAJ, PJe, e-Proc, Projudi, SEEU etc. A diversidade de nomenclaturas aponta — logo de cara — a variedade de experiências. Porém, mesmo em sistemas que possuem o mesmo nome, a existência de uma realidade congênere é insuficiente.

Ilustração 2 — Sistemas versus Usuário

Por exemplo: o sistema do estado da Bahia funciona por meio do e-SAJ, assim como o do estado de São Paulo. E o que isso significa? Significa que são iguais no back-end, porém, com certo nível de diferença de experiência no front-end. Cada Tribunal tem a liberdade para manipular o user flow da forma que desejar, o que gera uma quebra da padronização até mesmo em plataformas congêneres. Imaginou assimilar tudo isso e garantir um affordance padrão com oitenta maneiras de se fazer a mesma coisa?

Ainda que os sistemas sejam os mesmos (o que garante alguns aspectos do back-end), o front-end é completamente afetado. Mesmo que existam métricas de UX sólidas nos mais de oitenta sistemas, cada um terá a própria imersão, pesquisa, prototipação e design. Não existirão blueprints ou interpretações da jornada idênticos. Estamos falando de dezenas de squads independentes iniciando os trabalhos sem diretrizes de padronização em escala nacional.

A consequência de sistemas independentes pode ser extremamente danosa, caso não exista uma diretriz a ser seguida. A execução das boas práticas de design irá variar de acordo com quem está gerenciando o projeto. A regra de usabilidade para feedback e erros fornece padrões intermináveis de pontos de contato. Localizações de navegação distintas, elementos clicáveis com retornos diferentes ou inexistentes, fornecimento de resultado de ações imprevisíveis e pontos de verificação singulares.

Para elucidar, trouxe abaixo quatro telas da área logada do usuário. Três delas propositalmente do mesmo estado (Rio de Janeiro), para que seja possível exemplificar os desafios do usuário que não atua em todo o território nacional, mas está obrigado a utilizar o sistema dentro da própria unidade federativa. E, além dos três, um quarto sistema de instância superior, que é um desafio de âmbito nacional.

Tela 1 — Sistema e-Proc: Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro
Tela 2 — Sistema TJERJ: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
Tela 3 — Sistema PJe: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
Tela 4 — Sistema STJ: Superior Tribunal de Justiça

2. Existem exceções (mas sem otimismo, por enquanto)

Dentro de todo esse caos existe um sistema que foi desenvolvido pelo CNJ — Conselho Nacional de Justiça –, com o objetivo de ser o sistema base para todos os tribunais (uma realidade que parece estar longe de acontecer). Apresentado acima (tela 3), o sistema leva o nome de PJe — Processo Judicial Eletrônico. Assim como os outros, possui um formato básico para ser trabalhado. Entretanto, mesmo com o projeto de padronização em escala nacional, ainda existe certa independência na implementação das versões.

O PJe ostenta um style guide próprio e um design system mais maduro que os demais sistemas, exprimindo alguma identidade visual e colocando o usuário bem familiarizado com o fluxo de navegação pouco variável. Ainda assim, existem fatores que saem da padronização e, não raramente, é possível encontrar fluxos semelhantes, mas não idênticos. É como se o design system fosse uma opção a ser seguida.

Resumidamente é o seguinte: o CNJ fornece o back-end do sistema e, de uma forma moderadamente flexível, os tribunais decidem como irão lidar com os elementos de usabilidade no front-end, entregando versões adaptada. Para explicar melhor, abaixo irei colocar duas telas de sistemas que utilizam o PJe como base de desenvolvimento; ambos na área logada do usuário.

Tela 5 — Sistema PJe: Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro
Tela 6 — Sistema PJe: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

Com a missão de ser o sistema padrão e servir como modelo nacional, o PJe também não segue a proposta à risca; mas sua pouca variação de experiência gera menor dor ao usuário e, mesmo não sendo o ideal do ponto de vista de entrega, acaba sendo o “menos pior”.

Apesar dessa implementação parcial diminuir a carga cognitiva, ainda gera alguma tensão ao apresentar telas similares, mas com desvio de flow. Esse desvio, segundo o autor de “Rápido e Devagar”, Daniel Kahneman, estressa a percepção e impacta diretamente a evolução automática de tarefas em troca do foco na resolução de desafios complexos.

“A tensão cognitiva é impactada tanto pelo nível atual de esforço, quanto pela presença de demandas não executadas” — Daniel Kahneman, Rápido e Devagar

3. Um caminho árduo

Como o PJe é o sistema modelo e, de acordo com o CNJ, substituirá todas as outras plataformas, vamos então tratá-lo como o principal sistema brasileiro. Diante de alguns poucos recortes, irei comentar a própria análise documental que o CNJ fez por meio do Caderno PJe, publicado no ano de 2016.

“Nos anos de 2011 a 2012, houve grande e acelerada expansão do PJe, principalmente na Justiça do Trabalho, o que agravou problemas que afetaram principalmente o desempenho do sistema. No período, as equipes técnicas identificaram a necessidade de definir novo modelo arquitetural sustentável para o PJe, alicerçado com atributos de qualidade como testabilidade, manutenibilidade, escalabilidade e segurança. Além disso, o sistema precisava conter requisitos que facilitassem a sua utilização, ou seja, com design voltado principalmente para a facilidade de uso (usabilidade) e com desenho universal (acessibilidade).” — Caderno PJe, página 16, primeiro parágrafo

O diagnóstico é preciso e elucida toda a redundância que foi explorada por mim até aqui. Era preciso construir todo o caminho de usabilidade e acessibilidade. Incrível que existe a consciência na publicação e que — sem dúvidas — existe uma equipe muito técnica e engajada nas melhorias do sistema. Mas será que foi possível testar tudo isso?

Outro problema dizia respeito à dificuldade de se testar o sistema, desde o nível negocial, que é o que atesta o correto funcionamento, até o nível técnico. Merece referência também o fato de o sistema ter sido construído com excessivo acoplamento entre os seus diversos módulos, prejudicando sobremaneira a sua manutenibilidade, já que não há uma clara divisão entre as camadas da arquitetura, além do fato de simples modificações realizadas em parte do sistema causarem impacto grande em outras. — Caderno PJe, página 16, segundo parágrafo

Certamente eles tinham consciência do problema. Houve um planejamento e eles decidiram definir avançar para o chamado PJe versão 2.0, que substituiria o primeiro, com melhorias voltadas aos pontos citados no Caderno PJe.

Para tanto, houve necessidade da revisão da arquitetura do PJe e do alinhamento das consequências daí decorrentes, da especificação de um modelo de desenvolvimento adequado, além da definição de um modelo para experiência do usuário (UX), com adoção de conceitos de usabilidade e acessibilidade. A construção do PJe versão 2.0 deu‑se em paralelo à manutenção das versões atualmente implantadas. Essas, por sua vez, serão mantidas com a remoção de bugs e o incremento de funcionalidades essenciais. Caderno PJe, página 17, Implementação

A verdade: foram suprimidos dezenas de bugs e dificuldades de acesso. Porém, em 2023, sete anos depois do lançamento do Caderno PJe, mesmo com o sistema presente em mais de cinquenta tribunais pelo país, ainda possuímos problemas simples na personalização de elementos que, via de regra, deveriam buscar uma padronização rígida. Qual é o sentido de se possuir uma aplicação e não determinar diretrizes de aplicabilidade?

É um sistema extremamente maduro e com um extenso caminho de desenvolvimento. O destaque principal vai para os tribunais trabalhistas, que apresentam o PJe “puro”; todos apresentam um layout sólido e hoje trabalham na versão “2.8.6 — IMBIRUÇU” do PJe. Você consegue navegar com a mesma experiência em todos os 30 sistemas; feedback, navegabilidade, prevenção de erros, documentação unificada, parametrização com a realidade e demais heurísticas foram alcançadas.

Infelizmente as diretrizes não se aplicam quando o CNJ fornece o projeto aos estados, que navegam em versões preferenciais. Ao longo do tempo o esforço para definir as metas parece ter perdido impulso e as versões começaram a gerar ramificações nas unidades federativas. Traçando um paralelo, é basicamente como buscar o Android “puro” e encontrar todas as customizações que variam a experiência de acordo com a interface do fabricante.

Ainda é necessário estudar como o PJe sobressairá diante de sistemas como e-SAJ e e-PROC, que possuem níveis de aceitação altíssimos e são tão bem documentados quanto o PJe.

4. Não é só sobre sistema

Entretanto, outro enorme problema não está dentro dos sistemas, mas sim na arquitetura dos sítios e no fluxo de navegação. Sendo oitenta plataformas, o usuário precisa lidar com a mesma quantidade de sítios. O problema além do óbvio? O acesso à área de login. Por algum motivo os tribunais “escondem” o acesso ao ambiente logado. A falta de padronização também é algo característico por aqui, tornando o user flow um pesadelo.

Hora do desafio! Procure a área de login nos seguintes sites:

Você — provavelmente — teve dificuldades para encontrar a área de acesso do usuário. Em alguns casos o acesso é iminente. Em outros casos, não.

O meu exemplo preferido de usabilidade é o sítio do STF — Supremo Tribunal Federal, que deixa em evidência a área de login no topo da página inicial. Se todos os tribunais adotassem essa prática, teríamos uma fluidez maior e uma importante diminuição da carga cognitiva.

Tela 7— Sítio do STF: Página Inicial

5. Relevância de Tráfego

Claro que tudo até aqui é uma questão de um nicho e que parece não possuir certa magnitude. O processo judicial eletrônico não é um produto ofertado para muitas pessoas diretamente e isso impede que tenhamos a percepção adequada do tráfego dentro dessas plataformas.

Abaixo temos o tráfego mensal no sistema judiciário comparado a sítios conhecidos. Os dados foram coletados por meio de métricas de pesquisas realizadas em browser, colocando o Sistema Judiciário entre os cem domínios mais acessados do Brasil.

Gráfico 2 — Relação de Tráfego Mensal por milhão em cada domínio

São 44 milhões de acessos mensais, superando domínios como o da Netflix, que ostenta 2.4 milhões de assinaturas (podendo possuir contas compartilhadas) diante de 1.5 milhão de usuários únicos do sistema judiciário.

Claro que, dentro do que foi elucidado, os endereços do Sistema Judiciário ficam pulverizados em vários sítios. Entretanto, se fosse um objeto centralizado, onde o portal fosse único e exprimisse a padronização necessária, o sítio do Sistema Judiciário estaria entre os cem domínios mais acessados do Brasil, de acordo com a métrica do “semrush”.

6. Conclusões de um apaixonado

A iniciativa de se ter um processo judicial eletrônico como o nosso, antes de tudo, é louvável. Longe de mim questionar todo o esforço aplicado diante das melhorias de cada projeto. Existem muitos problemas, mas existem ainda mais motivos para nos orgulharmos desse movimento tecnológico que tirou um pedacinho do Brasil da era do papel.

Muitas das complicações e quantidade de sistemas existem pela necessidade de se iniciar a transformação. A intenção era nobre, mas hoje temos um problema para ser resolvido. Fico curioso para saber de que forma sistemas com ampla utilização serão suprimidos pelo PJe.

No mais, sistemas como o e-Proc, e-SAJ e o próprio PJe são um deleite e deveriam ser estudados exaustivamente como cases de sucesso e transformação. Mesmo que eu tenha levantado pontos importantes e cuspido algumas vespas, não tem como dizer que o trabalho técnico é amador. Não é. Nosso problema não é qualidade (em alguns casos, sim), mas sim a quantidade.

Alguém me disse alguma vez que, provavelmente, possuímos um dos sistemas judiciais eletrônicos mais avançados do planeta. Gosto de acreditar que isso é uma realidade. O próprio PJe tem sido replicado em países como Argentina, Bolívia, Paraguai, Portugal e Timor-Leste. Além disso, o PJe foi mencionado em várias conferências e seminários internacionais, incluindo o Fórum Europeu de Justiça Eletrônica, a Conferência das Américas sobre Governança da Internet e o Encontro Anual da Aliança para a Justiça Eletrônica. Estamos, oficialmente, exportando experiência de usabilidade.

Ao passo que todos os sistemas forem substituídos por um único modelo, com diretrizes sólidas e sem a flexibilidade atual (advinda da burocracia estatal), teremos um nível ideal de consistência. Até lá os usuários precisarão lidar com variedades de plataformas (com usabilidade e acessibilidade próprias). Talvez seja o preço de se viver no curso de uma transformação tecnológica.

Ainda acho necessário que o research atinja mais as demandas dos usuários. Existe muita reclamação em cima dos sistemas e, em sete anos lidando com essas interfaces, jamais vi sequer uma pesquisa de satisfação direcionada aos usuários.

Quanto aos sítios e o acesso à área logada: não existe desculpa. O usuário precisa acessar o sistema. Toda a movimentação dos portais se dá pelo ato dos usuários que desejam consultar ou entrar com demandas. Se tudo acontece por conta desses usuários, por qual motivo o local de login fica tão escondido? Isso me incomoda. É preciso buscar um padrão e testar. O exemplo que dei acima sobre o sítio do STF mostra de forma exemplar como deveria ser em todos os tribunais. Sem exceções.

O caminho é longo, mas aqui estamos. Um país com seus problemas, mas que possui uma enorme realidade de estudos de user experience e user interface em seu sistema judiciário. O curioso é que muitas empresas privadas demoraram para aderir/digerir a necessidade de olhar para o UX/UI da forma que o CNJ, ainda em 2009, decidiu fazer.

No fim, temos muitos motivos para comemorar, muito material para estudar e, como sempre, muito trabalho pela frente.

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